"As Horas" | © Miramax

As Horas | Cinema com Orgulho

Nicole Kidman ganhou o Óscar para Melhor Atriz por “As Horas,” uma adaptação literária que ainda conta com Meryl Streep e Julianne Moore no seu elenco de luxo.

Quando falamos de literatura inglesa no século XX, poucos nomes serão maiores e mais essenciais que Virginia Woolf. Desde os seus romances a correspondências postumamente publicadas, a sua obra é incontornável, um monumento artístico quase impossível de sobrevalorizar. Num contexto de análise queer, o trabalho dela ganha ainda mais projeção, até quando é usado como ponto de partida para subsequentes dissecações, talvez até a subversão. Pensemos nas muitas leituras de “Orlando, por exemplo. De facto, esta obra não vale só por si, tendo uma influência imensa numa panóplia de artistas que vieram depois de Woolf.

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E esse impacto não se regista só na palavra escrita. No cinema, muitas obras já tiveram direito a adaptação direta, como o “Orlando” de Sally Potter, a “Sra. Dalloway” de Marleen Gorris, ou “Ao Farol” de Colin Gregg. Mas também já se viram projetos mais rebuscados, ao estilo de meta-textualidade que se precipita sobre si mesma numa espiral descontrolada. “Orlando: A Minha Biografia Política” de Paul B. Preciado será o devaneio mais claro, mas podemos tirar conclusões semelhantes sobre o trabalho de Chantal Akerman nos anos 70. Teríamos “La Chambre” ou até “Je Tu Il Elle” sem o “A Room of One’s Own” de Virginia Woolf? Não nos parece.

Além dessas glórias, também temos que considerar os retratos da própria Woolf em modalidades variadas. Ora as experiências de Eileen Atkins ou o convencionalismo biográfico de “Vita & Virginia,” sobre o romance atribulado entre a escritora e Vita Sackville-West. Mas é evidente que o retrato mais famoso será o que Nicole Kidman fez em “As Horas,” adaptação do livro homónimo que valeu o Prémio Pulitzer a Michael Cunningham. O filme, por seu lado, levou a estrela Australiana até ao palco dos Óscares, onde arrecadou a estatueta para Melhor Atrizpor um nariz.” Perdoem-nos a piada, mas o gozo de Denzel Washington vinga até hoje.

Uma mulher triplicada dança com a Morte.

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A ação é tripartida e entrelaçada, seguindo três mulheres num só dia das suas vidas, quando questionam a sua sexualidade e ponderam o suicídio. Acima desses ecos temáticos, contudo, o que as une será a “Sra. Dalloway” que já aqui mencionamos, um romance do pós-guerra, originalmente publicado em 1923. Uma mulher escreve a história, outra lê-a, e a terceira vive-a. São elas a própria Virginia Woolf durante o período em que vivia em Richmond, longe do centro londrino numa tentativa desesperada de preservar a saúde mental. Depois temos Laura Brown, uma dona-de-casa na Los Angeles de 1951, grávida com o segundo filho e presa a uma domesticidade sufocante.

Por fim, em 2001, encontramos Clarissa Vaughan, uma nova-iorquina, lésbica assumida, que está a preparar uma grande festa para celebrar o seu melhor e mais antigo amigo, Richard. Um poeta a definhar perante as complicações da SIDA, ele reflete o soldado traumatizado da “Sra. Dalloway” do mesmo modo que a amiga nos surge como a heroína titular desse romance. No fim, em semelhança ao que Woolf escreveu, será o poeta quem se mata, mas, antes disso, muitas figuras de “As Horas” refletem sobre essa escolha. Amarradas a um ciclo viciosos de três batidas, as mulheres parecem quase dançar com a Morte.

Não é por acaso que a única divergência dos três dias ocorre logo no início, dramatizando a manhã em que Virginia Woolf se afogou, sua missiva para o marido a ressoar na banda-sonora. Esta introdução serve de cerne temático para “As Horas,” impondo-se sobre a fita como uma grande sombra à qual ninguém consegue escapar. Também é o nosso primeiro vislumbre de Kidman, face mascarada por cosméticas transformadora, e sotaque australiano trocado por cadências britânicas. Como é costume, esse último aspeto está meio fracote, mas o resto da interpretação compensa a falha. Basta ouvir a convicção naquele voz-off inicial para perceber isso.


O seu maior desafio é a exteriorização da interioridade secreta de Woolf, lutando contra o cliché do desespero feminino em cinema, procurando uma vertente da loucura que não caia no lugar comum. Há uma inteligência brilhante no seu olhar, acompanhada por uma qualidade no limiar do voraz. A visita da irmã, interpretada por Miranda Richardson, representa o ponto mais alto destas escolhas, culminando num beijo transtornante. Nem é o tabu quebrado do incesto que mais choca, mas a fome vampírica com que Woolf ataca a boca da outra mulher. Será que lhe quer sugar a vida? Quiçá queira saborear a vontade de viver.

Como tudo neste filme, o beijo é parte de um tríptico, com o gesto a repetir-se em contextos distintos ao longo das outras histórias. Para a Laura de Julianne Moore, acontece quando uma amiga vem de visita, trazendo consigo toda uma comparação ingrata entre ideais femininos. Em figurino imaculado dos anos 50, Toni Collette é a mulher perfeita para a América de Truman, mas nem isso a poupa de um cancro que lhe consome o organismo. Quando Laura a beija, não vai em busca de vitalidade. No extremo, ela procura a Morte nos lábios da amiga, talvez em impulso mártire ou uma confissão erótica com um cheirinho fatalista.

Kidman é uma mulher perdida no desfiladeiro da sua própria mente, aos gritos para se fazer ouvir por aqueles que lhe estão perto e permanecem impávidos. Moore assume a postura de alguém a ser puxado para debaixo de água, incerta entre deixar-se levar ou se salvar. Até o modo como aborda o diálogo que David Hare lhe propôs reflete esta tensão. Ouçam bem aquelas falas, a respiração soluçada, o sussurro que se esvai nas últimas sílabas, o som de pulmões a pedir mais oxigénio. São, portanto, criações que brincam com estilização, talvez até um rasgo de grotesco. Transcendem o naturalismo puro e duro para almejar algo mais real que a realidade.

Essencial para quem ama grandes atrizes.

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Essa é a principal razão pela qual Meryl Streep se destaca tanto no fio narrativo mais contemporâneo. Tudo o que há de afetado e maniento em Clarissa surge como a natureza performativa da própria mulher, extensões orgânicas desta anfitriã de festas literárias para a elite cosmopolita. Sendo a mais liberada das três, a Sra. Dalloway da Grande Maçã não deixa de defender a sua vulnerabilidade, até mesmo daqueles que lhe serão mais próximos. Se o beijo das irmãs é vampírico e o das amigas se perde em romantismos martirizados, aquele que Clarissa partilha com a namorada é mais simples, mais corriqueiro e superlativamente íntimo.

É um gesto que rima com o suspiro e não caça nem pela vida ou morte. Meramente quer alguma catarse, porventura entendimento, um alívio do fim do dia, em rescaldo da perda. Que maravilha, que milagre! Escusado será dizer que as atrizes em cena são verdadeiras deusas do grande ecrã e ainda nem as enumerámos todas. Uma salva de palmas também para Alison Janney, Claire Danes e Margo Martindale. Os homens também não estão mal, diga-se de passagem. Stephen Dillane chega ao mesmo nível das colegas e John C. Reilley está lá perto. Só Ed Harris desaponta como Richard e, como o mundo é injusto, foi quem recebeu nomeação para o Óscar de Melhor Ator Secundário.

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Não que tenham faltado indicações para prémios ao filme. “As Horas” foi bem reconhecido na altura, marcando o segundo triunfo do realizador Stephen Daldry depois de “Billy Elliot.” A montagem de Peter Boyle é essencial para o fluxo dos três tempos da ação, rimando movimentos e golpes temáticos. Ao mesmo tempo, a câmara de Seamus McGarvey dança com o elenco, os cenários de Maria Djurkovic, e com a Morte que as personagens valsam também. Tudo feito ao som das composições inesquecíveis de Philip Glass. Até os elementos menos vistosos são meritosos, com os figurinos de Ann Roth a marcarem a diferença pela recusa do fausto associado ao cinema de época. Em suma, se ainda não viste “As Horas,” tens que retificar a situação o quanto antes. Então se amas grandes atrizes ou te identificas com a prosa de Virginia Woolf, é cinema essencial.

Podes alugar ou comprar uma cópia digital do filme através da Apple TV. Também há várias edições internacionais d’”As Horas” em DVD, disponíveis para venda em múltiplos sites.



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